Francelina apareceu não sabemos de onde.
De lugar em lugar, estacionou na minha aldeia e por lá continua a circular vai para cima de uma década. De rosto envelhecido e mãos mimosas, esta mulher lá vai vivendo como pode. Agarra-se ao trabalho quando o vício do vinho lhe dá folga. Leva para casa uns euros, alimentos da terra e os restos do almoço da patroa do dia. Apesar de desengonçada, olhos esbugalhados e de bafo a roçar destilarias, é mulher e tem desejos como outra qualquer. Quis Deus que a humanidade se desenvencilhasse com as suas próprias ferramentas por isso, nunca falta um testo para uma panela. Francelina arranjou um namorado. Trabalhador, mas igualmente viciado em copos de tinto rasca e outras bebidas ao nível da sua carteira.
Há um par de semanas, montaram na sua motorizada rumo a uma festa à distância de vinte km, mais coisa menos coisa, como tudo na vida destes dois. O divertimento secou-lhes a garganta, era tempo de dar trabalho ao fígado e alimentar a úlcera que se começava a manifestar. Emborcaram generosamente de tudo, era início do mês e a carteira ainda pesava. Se para lá foram sóbrios, na volta, o vício turvou-lhes a visão. Conscientes e porque têm amor à vida, regressaram devagarinho noite fora com a Zundapp a rasgar o silêncio. De olhos arregalados e chorosos do vento, encandeiam-se com as luzes e o verde reflector da brigada de trânsito. Francelina vê a vidinha a andar para trás e desata em prantos como uma Madalena arrependida. E, se o seu companheiro acusou álcool no sangue, ela superou-lhe o nível.
Com o veículo apreendido e sem dinheiro para pagar a multa, regressam a casa de rostos gelados mas de pés a ferver. Francelina, que não é mulher de baixar os braços, já passou por muito na vida, magicou a noite toda a engendrar quem lhes podia valer.
Com ardência na boca do estômago, e as fontes da cabeça a latejar, planta-se à porta de casa do Sr. Presidente da Junta da Freguesia. Com palavras lamentosas e semblante estoirado da noite, pede-lhe por todos os santinhos que os ajude e lhes pague a multa.
Ora, o Sr. Presidente da Junta, um rapaz muito bem-apessoado, licenciado em Relações Internacionais, de gostos caros e muita diplomacia, rapidamente resolve a situação. Paga a multa mas, em troca, os dois terão de fazer trabalho comunitário. Com vénias e agradecimentos excessivos, Francelina esfrega as mãos de contente. O facto de tamanha alegria já tinha àgua no bico, porque esta mulher não dorme para se safar! E, assim lá foram despachados para o cemitério com trabalho destinado até conseguirem repor a dívida. Inchada com a sua capacidade de resolução dos problemas, enquanto o companheiro se esfalfa a executar o que lhes foi atribuído fica ela a dar à matraca com quem se cruza por aqueles sítios, vangloriando-se da sua esperteza e rapidez de raciocínio.
Para Fábrica de Letras
Com o tema: “Uma Pessoa”
(o nome da personagem principal é fictício para preservar a identidade verdadeira)
Com carinho
Mz