segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O Super-herói do meu vizinho




Num dos cantos daquele ondular lusitano que inventei para dar um ar poético ao que não passa de um telhado vulgar, cruzamos olhares indiferentes para depois, matematicamente incidirem no objeto que jaz numa dormência inerte. Anos e anos ali. É um boneco inanimado. Matéria morta. Nu e resistente a todas as intempéries. Um super-herói esquecido vai para cima de uma década sem que o dono se inquiete com isso -  o meu vizinho. Valida a deslembrança de todos os momentos de brincadeiras felizes que passaram juntos. Incomoda-me o desprezo dado ao boneco, e todos os anos penso que haverá um dia no ano em que ele o irá recuperar.
Quantas emoções nos atravessam o olhar e a mente? Por contágio nem todas nos chegam ao coração. As que nos tocam, até podem ser como esta - um exemplo inanimado. Um pedaço de plástico para nos fazer lembrar que pelo mundo haverá sempre um punhado de homens e mulheres desapaixonados, onde todos os sentimentos, amizades e relações não passam apenas de momentos minguados cujo propósito se molda na proporção de interesses transitórios. 


mz


Imagem: tela de Maluda, Lisboa 1983
Pintora Portuguesa aqui e aqui

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Camélias




Encontraram-se os dois por acaso. Era tempo de Camélias. Singelas. No vaso de cristal em disposição assimétrica via-se a alegria do conjunto rosa e amarelo. Pétalas e estames em êxtase. Um toque oriental, exóticas e tão nossas. Tão portuguesas. Ele disse que iria fazer uma aguarela, mais tarde quando tivesse tempo. Talvez em Março quando fosse primavera. Ela lembrou-se do dia do seu casamento e do grande ramo em botão que segurava graciosa. Uma cascata branca de noiva. Genuína ingenuidade. As camélias a caírem-lhe no colo, desejosas por se abrirem e ela, ansiosa de desejo e de se abrir como uma flor. Maravilhosa. Deslumbrante. Afastou o cabelo do mesmo jeito que afastara o véu há tanto tempo atrás. Suspirou. 


mz



Imagem:  Tela - Gustav Klimt, 
Ritratto Di Signora - Galeria Ocaiw

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Ano Novo





Da minha janela tenho um olhar inquieto para todos os telhados que alcanço. A paisagem não me pertence de todo, nem tão pouco poderei dizer que é uma paisagem espetacular. Fisicamente é apenas um ondular lusitano que cobre a maior parte das casas de todos nós. Alegre e colorida quando faz sol, melancólica quando chove e ausente de cor quando cai a lua. São olhares a prazo e passageiros como a vida. São estados de graça também. E na fragilidade do barro de que são feitos todos estes telhados e todas as inquietudes guardadas em cada olhar, o contraste com a grandiosa força do planeta. O movimento. O tempo que arrasta o homem com todos os seus humores e atitudes. Uma espécie de presente. Um ano novo por ano, todos os anos.


mz



Imagem: tela de Maluda,  Lisboa 1988
Pintora portuguesa aqui e aqui