domingo, 30 de setembro de 2012

Embrulhar Sonhos




O rapaz largou o sonho. Empilhou os livros e rendeu-se. Guardou-os todos em caixas de cartão que já transportaram bolachas e outras coisas. Suspirou e fechou-os juntamente com restos de aromas. Café, especiarias e talvez lavanda. Perdeu-se com a lavanda e divagou - um anti traça talvez - Engoliu em seco. E porque era obrigado a arrumar o sonho, apressou-se pegando desembaraçado no novelo de cordel para apertar as caixas com os livros e os aromas que estavam ali por acaso. Voltou a suspirar e hesitou no nó que lhe daria.

- Cego ou de laço?

Optou pelo laço. Sempre lhe dava um ar esperançoso de voltar  à faculdade.

Mz



Imagem: Odilon Redon

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Inocência



Hoje lembrei-me de uma ideia tão estapafúrdia quanto inocente num tempo em que a adolescência ficava para trás. Um êxtase de vida ilusória de permanecer sempre igual. Jovem e feliz. A mesma casa para sempre. Os mesmos amigos. A convicção da eterna estabilidade. Foi um período de tempo de uma doce dormência, o mais curto que passou por mim. Quando me apercebi que nada disso seria possível, chamei-lhe a mentira do tempo suspenso.
 
 
Mz
 
 
 
 
Imagem: Tela de Odilon Redon
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domingo, 16 de setembro de 2012

Confissões



A casinha funda, térrea, fresca e musguenta, o esconderijo. O clube de Verão até ao último dia de férias. Da casinha do poço de céu aberto, saíam por vezes ecos malcriados dos miúdos que hoje já têm filhos crescidos. Contam-lhes do esconderijo, o lugar onde gostavam de soltar as palavras mais feias da língua portuguesa. As palavras proibidas. O prazer de gritar bem alto. E o eco era a fascinação. O eco, o retorno de se ouviram a eles próprios num gozo que ninguém conseguia entender.
Mz
imagem: David Lorenz Winston


domingo, 9 de setembro de 2012

O Noivo


O fato barato, as gravatas fora de moda e os óculos que não negam a miopia, passaram à história. Acabou-se a modesta imagem do rapaz de Vancouver. Eu canso-me de o olhar e tentar ver outra coisa, mas ele apresenta-se todos os dias como um noivo.

Os homens do povo vestidos com restos dos filhos passam a sesta à sombra da árvore mais antiga da aldeia e palitam os dentes em forma de reflexão. Soltam palavras de vez em quando dando azo à fantasia. E vêm o mesmo que eu. O Álvaro*, o emigrante que veio desposar o rosto cansado da economia portuguesa. É o noivo vaidoso que deixou a noiva só e quase abandonada depois de ter a aliança no dedo. A economia apenas lhe sentiu o sabor dos pastéis de nata naquele beijo fugaz e a cópula não se cumpriu. Veste-se de noivo todos os dias e, a noiva perplexa, espera o êxtase prometido.


Mz




imagem/Tela Ernest L.Kirchner

domingo, 2 de setembro de 2012

Manhas de Cão



Talvez o meu cão entenda para cima de cinquenta palavras. Entre ordens, nomes de pessoas e de outros bichos, também o nome de lugares, objetos e brincadeiras. É vocabulário solto. Muitas vezes, tenho de baixar a voz ou utilizar sinónimos de palavras que ele não conheça, para  não ter um cão de orelhas no ar preparadíssimo para sair, quando terá de ficar em casa. Chego até a convencer-me, de que lê o dicionário às escondidas quando me tem pelas costas. A minha maior luta, foi tentar metê-lo num elevador e quase perdi a paciência quando demorei dois meses a convencê-lo. Agora, já se recusa a subir e a descer escadas. Os bichos são como os homens, depressa se habituam à papa doce.

*Os recomeços são ciclos contínuos, como um cão que roda sobre si mesmo tentando alcançar a sua própria cauda. Ainda que não se alcancem todos os objectivos, o importante é nunca desistir.

Mz




Escrito para Fábrica de Letras
Tema: Recomeços

Imagem: Acrílico de Paula Rego