segunda-feira, 19 de maio de 2014

São Contos





No embalo do comboio da linha, lia o rapaz à sua paixão que não se inibia de lhe dar beijinhos e mordidelas. O livro, muito velho, cobria-se de capa papel pardo com título escrito à mão em duas linhas - Fialho de Almeida – Contos. Quem o escreveu, prolongara o traço do T por toda esta última palavra como se quisesse abraçar todo o seu conteúdo. E ia lendo páginas em voz alta, este apaixonado romântico a fazer lembrar aqueles homens antigos. Voz bem colocada, belo cabelo de ondas largas, bem cortado e barba espessa, arruivada, uns pontinhos de sardas a salpicar a sua pele que era tão branca. Ela deixou os beijinhos para se aconchegar, poisando a cabeça no seu ombro de trovador de brinco na orelha e sorria feliz. Uns dentinhos brancos em rosto de chocolate, olhar doce a contrastar com o vinho na cor do lenço, muito mãe áfrica a segurar os cabelos de mil tranças. Rodeados de gente, viajavam sozinhos naquele comboio. E eu detestei um velho senhor que incomodado, resmungava porque tinha de escutar poemas.
- Não são poemas Senhor, são Contos de Fialho.


mz


imagem: fotografia do blogue, 
Diário de Lisboa -The Lisbon Diary


quinta-feira, 1 de maio de 2014

Um presente




O pai ofereceu-me a máquina de escrever dos anos 70 e porque sou eu que lhe tenho o maior carinho, em melhores mãos não podia ficar. Sem um único risco ou defeito, transforma-se numa malinha de mão de cor azul cheia de recordações da minha infância e adolescência. Adoro-a. É um objecto vintage que eu assemelho a um automóvel sem direção assistida. São necessários dedos musculados para dedilhar aquelas teclas de esqueleto metálico e escrever uma dúzia de linhas. É uma luta. Parecia tudo muito mais fácil quando às escondidas escrevia cartas para as amigas e brilhava. Era top e supermoderno. Colocava-nos no patamar da alta tecnologia e o mais próximo de parecermos pertencer a um país desenvolvido.


mz




Fotografia: mz