quinta-feira, 21 de março de 2013

Medo.


Cada dia mais no limite, cada dia mais no fio da navalha. Estes não são os tradicionais crepes chineses da rua em cama de cartão. Eu vi-os no aeroporto mais ou menos asseados, arrastando malas baratas de lona cheia de borboto e de fechos estragados. Pedem um cigarro ou até mesmo as beatas e confundem-se com a multidão viajante. Eu vi-os na Gare do Oriente, arrastando bagagem que se resume a um monte de nada. Eu vi-os esta noite a juntarem-se em pequenos grupos tentando decidir talvez o lugar que irá servir de cama, ou quem ficará de vigia na noite que se aproxima. Eu vi-os e tive medo da verdade. Tive medo da miséria, da pobreza, do caos socioeconómico. Acelerarei o passo aconchegando o cachecol ao pescoço escondendo uma pequena joia, e consciente do meu egoísmo, continuei ainda com mais medo dos nossos novos pobres fugindo deles como quem foge da pior escumalha. Fugi de pessoas a quem lhes foi retirada a dignidade de um trabalho, uma casa, uma família. Apressei-me até ficar a salvo deste cenário dantesco e tive vergonha do meu medo.
 
Mz
 
 
Imagem: Tela de Amedeo Modigliani
Portrait of Maude Abrantes pesquisa google 
 

19 comentários:

Brown Eyes disse...

MZ ontem vi uma reportagem na TVI sobre o assunto e um deles dizia:
Que ele não queria o rendimento mínimo mas sim trabalho e que o governo não entendia o problema. Todos devíamos ter direito ao básico. Beijinhos

Carolina Louback disse...

Profundo e dramático o teu texto. Neste tempo de blogger nunca li nada tão tocante e tão bem expresso como estas tuas linhas.

Laura Santos disse...

Sinto um misto de pudor ("esconder uma pequena jóia")e o medo dum cenário de pobreza e miséria que ao fim e ao cabo pode vir a afectar muitos de nós...basta perder o emprego.
Mas não há que ter vergonha desse medo.Nada há de garantido hoje, por isso nada mais natural este sentimento de insegurança que gera medo.

manuela baptista disse...

pessoas que apenas por um frágil fio

poderemos ser nós

a vergonha do nosso medo, terá de ser o grito que aqui leio

tão tocante, Mz

um abraço


By Me disse...

O teu texto remete-me para uma cena de um filme...lamentavelmente real ...

O que se passa hoje, é caótico, sem qualquer sentido, ameaçador e irremediável.... quem não se sente ameaçado? Inseguro? Perdido? não se avista nenhuma luz ao fundo...que esperança??? Beijinhos e Boa Páscoa.

Lilá(s) disse...

Tocante o teu texto, em poucas linhas dizes tudo aquilo que vou sentindo dia após dia com mais intensidade...até quando vamos aguentar?
Bjs

luisa disse...

Eu também tenho medo. E vergonha.

mz disse...

Mary Brown, o direito ao trabalho é uma forma justa da sociedade se tornar mais digna.

bjs

mz disse...

Carolina, cair na rua será o que de mais baixo poderá acontecer ao ser humano e isso está a acontecer cada vez mais. É chocante ver e quando refectimos sobre isso,sente-se medo pela vulnerabilidade a que essas pessoas estão expostas e medo por nós próprios.

mz disse...

Basta perder o emprego e os suportes familiares. Verdade nada está garantido.

mz disse...

Manuela, a sociedade está muito fragilizada e alguns estão por um fio mesmo!

A quantidade de sem abrigos poderá aumentar exponencialmente se houver uma ruptura nas IPSS.

Um abraço para s também.

mz disse...

Pedras, lamentavelmente não é filme é realidade.

Uma boa Páscoa,
bjnhs

mz disse...

Lilás, só quem olha apenas para o seu umbigo pode ignorar o que se passa na nossa sociedade.

Até quando vamos aguentar?
Bjs

mz disse...

Luisa, medo da incerteza dos tempos.

Rafeiro Perfumado disse...

Trabalho na Av. da Liberdade, onde a cada dia que passa se juntam mais sem-abrigo. No dia em que não reparar também terei medo. Beijoca.

mz disse...

É a bela Avenida da Liberdade com os seus constrastes. Infelizmente!

Bj*

mz disse...

Sobre a palavra Sem-abrigo;

"Sem-abrigo" não tem plural é um adjectivo invariável. Não varia em número e escreve-se "sem-abrigo" para o singular e para o plural. É uma palavra composta.

Esta explicação, porque eu tenho um erro na palavra "sem-abrigo" na resposta que dei à Manuela Baptista.

João Roque disse...

Não sei o que sinto mais forte depois de ler este teu texto: se a sensação de que estive a ler um naco de prosa de excelente qualidade ou se um sentimento de revolta imensa pelo que está acontecendo neste nosso país...

mz disse...

João, eu prefiro que seja revolta, indignação e o assumir de que o nosso país está fragilizado demais.
E não somos apenas nós que temos de ter essa consciência. É quem nos governa, as altas instâncias nacionais e internacionais.