Cada dia mais no limite, cada dia mais no fio da navalha. Estes
não são os tradicionais crepes chineses da rua em cama de cartão. Eu vi-os no
aeroporto mais ou menos asseados, arrastando malas baratas de lona cheia de
borboto e de fechos estragados. Pedem um cigarro ou até mesmo as beatas e confundem-se
com a multidão viajante. Eu vi-os na Gare do Oriente, arrastando bagagem que se
resume a um monte de nada. Eu vi-os esta noite a juntarem-se em pequenos grupos
tentando decidir talvez o lugar que irá servir de cama, ou quem ficará de vigia
na noite que se aproxima. Eu vi-os e tive medo da verdade. Tive medo da
miséria, da pobreza, do caos socioeconómico. Acelerarei o passo aconchegando o
cachecol ao pescoço escondendo uma pequena joia, e consciente do meu egoísmo, continuei
ainda com mais medo dos nossos novos pobres fugindo deles como quem foge da pior
escumalha. Fugi de pessoas a quem lhes foi retirada a dignidade de um trabalho,
uma casa, uma família. Apressei-me até ficar a salvo deste cenário dantesco e
tive vergonha do meu medo.
Mz
Imagem: Tela de Amedeo Modigliani
Portrait of Maude Abrantes pesquisa google
19 comentários:
MZ ontem vi uma reportagem na TVI sobre o assunto e um deles dizia:
Que ele não queria o rendimento mínimo mas sim trabalho e que o governo não entendia o problema. Todos devíamos ter direito ao básico. Beijinhos
Profundo e dramático o teu texto. Neste tempo de blogger nunca li nada tão tocante e tão bem expresso como estas tuas linhas.
Sinto um misto de pudor ("esconder uma pequena jóia")e o medo dum cenário de pobreza e miséria que ao fim e ao cabo pode vir a afectar muitos de nós...basta perder o emprego.
Mas não há que ter vergonha desse medo.Nada há de garantido hoje, por isso nada mais natural este sentimento de insegurança que gera medo.
pessoas que apenas por um frágil fio
poderemos ser nós
a vergonha do nosso medo, terá de ser o grito que aqui leio
tão tocante, Mz
um abraço
O teu texto remete-me para uma cena de um filme...lamentavelmente real ...
O que se passa hoje, é caótico, sem qualquer sentido, ameaçador e irremediável.... quem não se sente ameaçado? Inseguro? Perdido? não se avista nenhuma luz ao fundo...que esperança??? Beijinhos e Boa Páscoa.
Tocante o teu texto, em poucas linhas dizes tudo aquilo que vou sentindo dia após dia com mais intensidade...até quando vamos aguentar?
Bjs
Eu também tenho medo. E vergonha.
Mary Brown, o direito ao trabalho é uma forma justa da sociedade se tornar mais digna.
bjs
Carolina, cair na rua será o que de mais baixo poderá acontecer ao ser humano e isso está a acontecer cada vez mais. É chocante ver e quando refectimos sobre isso,sente-se medo pela vulnerabilidade a que essas pessoas estão expostas e medo por nós próprios.
Basta perder o emprego e os suportes familiares. Verdade nada está garantido.
Manuela, a sociedade está muito fragilizada e alguns estão por um fio mesmo!
A quantidade de sem abrigos poderá aumentar exponencialmente se houver uma ruptura nas IPSS.
Um abraço para s também.
Pedras, lamentavelmente não é filme é realidade.
Uma boa Páscoa,
bjnhs
Lilás, só quem olha apenas para o seu umbigo pode ignorar o que se passa na nossa sociedade.
Até quando vamos aguentar?
Bjs
Luisa, medo da incerteza dos tempos.
Trabalho na Av. da Liberdade, onde a cada dia que passa se juntam mais sem-abrigo. No dia em que não reparar também terei medo. Beijoca.
É a bela Avenida da Liberdade com os seus constrastes. Infelizmente!
Bj*
Sobre a palavra Sem-abrigo;
"Sem-abrigo" não tem plural é um adjectivo invariável. Não varia em número e escreve-se "sem-abrigo" para o singular e para o plural. É uma palavra composta.
Esta explicação, porque eu tenho um erro na palavra "sem-abrigo" na resposta que dei à Manuela Baptista.
Não sei o que sinto mais forte depois de ler este teu texto: se a sensação de que estive a ler um naco de prosa de excelente qualidade ou se um sentimento de revolta imensa pelo que está acontecendo neste nosso país...
João, eu prefiro que seja revolta, indignação e o assumir de que o nosso país está fragilizado demais.
E não somos apenas nós que temos de ter essa consciência. É quem nos governa, as altas instâncias nacionais e internacionais.
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