terça-feira, 23 de junho de 2015

Delírio de Verão com manhãs cinzentas





E porque hoje o sol ainda não abriu, repete-se o mesmo tempo de ontem. Não me incomoda muito, podem vir dias de Verão mornos e manhãs cinzentas, eu gosto assim. Sobressai mais o que é colorido e a minha sardinheira gorda e inchada de vermelho é uma rainha encostada ao muro branco do seu castelo. Ilusão de paz momentânea, porque a natureza muito se guerreia. E as vaidades palacianas, declaram guerra à outra mais espontânea,  mais colorida, quiçá a mais popular. Do outro muro mais baço, a singela papoila.  Logo, logo depois das três da tarde, um solzinho malandro e aquela humidade que nos deixa a pele colada, pegajosa como açúcar, onde tudo parece ser e não é porque afinal, o sol sempre esteve lá e a pele sabe a sal.


mz



fotografia:mz

domingo, 14 de junho de 2015

Santo António, não fazeis milagres?





O ano passado fui contigo na procissão. O calor queimava-me os braços e punha-me a cabeça tonta, em cada passo, não sei se me arrependia ou se me encorajava. Todos os sapatos, grandes e pequeninos esmagavam erva-doce e o cheiro que largava escalava-me as narinas e remexiam-me as memórias. Um pouco do antes, na cadência e nas rezas e no cheiro, era a festa de outrora. No chão, também o junco e alecrim, incenso e alfazema, preservam-se as ervas do campo meu santo António que o resto se transformou. Generosas as casadas que te limparam e enfeitaram e te fizeram a festa, emprestaram seus meninos para compor a procissão. Já não há solteiras que te sirvam nesta aldeia. Por acaso não fazeis milagres? 


mz



imagem: aguarela de João Barcelos

terça-feira, 2 de junho de 2015

Os velhos guardam coisas preciosas





Estavam ali há anos aqueles cedros. Velhos e secos, apenas alguma ramagem verde conseguia segurar a decisão de não os cortarmos rentes e substituí-los por outra qualquer vedação. Hoje, encontrámos neles, três bicos amarelos e esfomeados de passarinhos. Expoente máximo da primavera e passámos a falar baixinho. Ela, na sua velha idade, lembrou-se de uma época em que sobre a barra da sua robusta cama de casal, numa verdadeira seda em tons de pérola sobressaíam quatro pássaros garridos em delicadas pinturas. Gosta da fantasia de acrescentar magia e como se ganhassem vida os chilreios das pinturas, a embalassem nas noites de insónia ou a ajudassem a elevar aos céus em momentos de intimidade.


mz




fotografia: mz