domingo, 28 de novembro de 2010

Aldeã...


Um dia chamaram-me Aldeã.

Gosto da palavra.
Nasci na aldeia num tempo em que as mães pariam em casa. Quem me amparou foi uma parteira aflita por ter nas mãos duas vidas. A de uma grávida, minha mãe e um ser pequenino com vontade de vir ao mundo - eu.
Nasci numa madrugada de Primavera e, enquanto toda a aldeia dormia, gritava eu, de vida. Esperneava sem saber quem me sustinha fora do ventre.
Gosto de aldeã, gosto de camponesa. Cresci com o aroma das frutas, cortei cachos de uvas e colhi maçãs, nunca lavrei uma terra, nem me deitei no feno. Doce e feminina, cresci. Tornei-me mulher com a fantasia de me sentir erva aromática exalando  perfume sempre que o amor me acaricia e me esfrega com a ponta dos seus dedos.








Pintura: Julien Dupre

Com carinho
Mz

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Debaixo da língua...



Longe da terra estrumada e revirada. Longe das hortas, dos vasos de barro vermelho, dos hábitos simples e rotineiros da aldeia quedo-me nostálgica. Nostálgica e inquieta quando certos nomes ficam debaixo da língua e não saem quando quero. Da terra, as plantas e principalmente as flores.

E, se me lembro, eram, e ainda são tantas as variedades trocadas entre amigas e vizinhas que os jardins tornaram-se vaidosos e as donas orgulhosas. Anos de abundância em que as flores também têm um lugar de destaque na sociedade. As flores tornaram-se sinal de um tempo farto, de um tempo sem fronteiras e de crescimento económico. Foram anos esplendorosos de novidades num país esperançoso.
Longe estão os tempos em que havia uma Primavera só de malmequeres brancos e amarelos, de cravos e cravetas, das primeiras pétalas de rosa para as noivas de Maio e dos varões de S. José para as primeiras comunhões. No Verão, as hortenses, dálias, camélias, gladíolos, zínias e a estranhas flores de papel tão coloridas e de cheiro seco e indefinido.
Sempre as mesmas flores, sempre as mesmas sementes...
O Outono, com os velhos crisântemos da época, símbolo de saudade e ainda as últimas rosas à espera que o vento  as desfolhasse. E, pobre era o Inverno de cândidos e envergonhados jarros brancos escondendo as fálicas saliências amarelas. O antigo espargo entrelaçado e preso em redes especiais permaneciam mais verdes que em todas as estações. Do interior das casas, espreitavam às janelas vasos fartos de finas e rendilhadas avencas.
Era assim noutros tempos.
Sempre as mesmas flores, sempre as mesmas sementes, e destas eu não irei esquecer, nunca!



(imagem:google)


Com carinho
Mz

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Fados...


Existem fados que inquietam e ferem a alma.
Feridas feitas por cão danado que abocanha o peito.
É dor na vida.
Sons de guitarra desafinada.
Escassas e indiferentes são as vozes, sérias.
Meu fado, meu país...
Ruas da calçada onde a chuva é turva,
Vielas escuras e mal cheirosas.
E, as palavras... promessas e mentiras.
Palavras que lavram na lama.
Tudo é esterco esgravatado nos corpos.
Corre o fado e corre a vida.
Fados negros.
Sentimentos estéreis.
Aqui nada é semente.
Nada é terra. Nada é árvore. Nada é fruto.
Ser nada inquieta.
Fecundar vazios e impossíveis.
Neste fado apenas ser...
Infértil.



fotografia de Carla Salgueiro aqui



Com carinho
Mz




quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Beijos...



Um dia, vou passar uma tarde inteirinha aos beijos.

É uma ideia que não me sai da cabeça sempre que alguém já antigo me fala dos namoros da sua época.
É uma ideia que me persegue. Não resisto a imaginar anos de namoro em que só os beijos eram permitidos. Beijos calculados,  cuidados, fugidios, roubados a medo ou com paixão. Atrevo-me a questionar se o prazer daí recebido seria único e soberbo e até onde levariam os amantes. Longe dos beijos de hoje, que rapidamente saltam para um frenético impulso faminto de sexo devorando-se libidinosamente. Hoje, são beijos saciados apenas e somente num  desaguar de espasmos no seu pico máximo de prazer.

Um dia, vou passar uma tarde inteirinha aos beijos...
Beijos suaves e leves, gulosos e também profundos. Vou  misturá-los com frutas exóticas e uma ou outra bebida. Depois, mais beijos...
Beijos trincados e saborosos, doces, ternos e outros tão longos que serão capazes de nos incendiar. Depois, talvez uma pausa para outras brincadeiras com risinhos à mistura e regressar novamente aos beijos.
Beijos.
Apetece-me dizer que o melhor do namoro é o beijo, muitos!
Muitos beijos...
E, se a paixão se medir pela quantidade de beijos dados, eu irei ter os lábios deformados de tantos beijos trocados.

Direi mesmo, que tantos beijos serão o princípio de um orgasmo perfeito.




Imagem: escultura de CONSTANTIN BRANCUSI - O Beijo, 1908








Com Carinho
Mz

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Ilusão...


Como se não bastasse eu ser terrivelmente influenciada por um ritmo circadiano em que a luz solar é fundamental para o meu bem-estar físico e psicológico.
Como se não bastasse ter Outono e Inverno para me deprimirem todos os anos até me habituar aos dias mais curtos.
Como se não bastasse este jogo da Natureza, tenho ainda a vaidade humana que me impõe uma Comissão Permanente da Hora que, para me confundir ainda mais sou obrigada a adiantar ou a atrasar o tempo.
E, tenho um Sol poderoso mas tão facilmente dominado por outros elementos. Tenho noites mais longas e o medo do escuro. Tenho a conta da luz que cresce conforme o frio. Tenho em todos os interesses do homem a causa de uma transparência confusa.
Aceito as regras. Aceito os jogos da Natureza mas, ainda assim, murmuro baixinho;

Tudo é ilusão...
Tudo é  ilusão!








Para a Fábrica de Letras
com o tema "Transparência"



Imagem Credit: Vincent van Gogh Aqui 




Com carinho
MZ

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Tempos...



Não são as tuas folhas caídas que me comovem,
Nem o chão atapetado de natureza morta.
Não me comove sentir harmonia no chão desarrumado pelo vento,
Nem as cores maravilhosas das tuas folhas, ainda que presas por um fio num galho frágil.
Excessivamente afogueado...
És Outono.
És caduco.
És perene e abusivo.
Despes a vida e tornas-te quase inconvenientemente sublime.
Sublime e contraditório.
Trazes na morte a renovação.
Mas hoje, tu não me comoves, porque tu és de acordo com a época.
Assim deve ser a tua natureza.

O que me comove hoje é o teu banco de jardim.
Comove-me o teu banco pintado de verde à espera de gente sem esperança.
Sem cor.
Sem rumo.
Gente quase perdida num Outono de desespero.

Comovem-me os tempos que se auguram difíceis.




Fotografia: Soldadodesconhecido


Com carinho
Mz