quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O Largo


Sempre os vi ali...
A aldeia é a guardiã.
Os rostos vão sendo substituídos mas o estatuto é sempre o mesmo,
“Velhos”

Se o tempo lhes permite, permanecem sentados em bancos de ripas verdes sempre de costas voltadas para as paredes brancas da capela.
Contentes... de costas voltada para o Stº António!
O Santo já se habituou há muitos anos...
Imortalizado em calcário coimbrão do séc. XV, bastante tosco, tem idade suficiente para que isso não o incomode.
São tantos os dias de clausura que rejubila uma vez por ano quando chega a procissão da festa com o seu nome e o levam a arejar empoleirado num andor enfeitado de flores.
Talvez preferisse ficar sossegado na sua clausura. Antes de ser santo também foi homem... não conheceu a velhice, morreu cedo e por isso eu gosto de pensar que ele se sente mimado nesse dia.
Perdoa todos esses homens e mulheres que em tempos suplicaram um casamento a troco de rezas e oferendas. Ele não se recorda de pedir o que quer que fosse! Mas eles lá se iam casando. Das oferendas não lhe via o rasto...
Sempre foi assim...
Depois, sempre que envelhecem, viram-lhe as costas ainda que inocentemente. Mas ele gosta de ter ali aqueles rostos sulcados, aqueles corpos já curvados, coleccionando artroses, ciáticas e outras maleitas dolorosas que a idade lhes foi oferecendo.
Não leva a mal por isso. Por seu lado, esses homens e mulheres aceitam a velhice.
Resignados, gostam de dizer que as manchas castanhas que hoje cobrem a sua pele são as flores da idade e riem...
Riem mostrando as bocas engelhadas com dentaduras reluzentes ou mostrando somente os poucos dentes que ainda conservam.

É ali, no largo da aldeia com o mesmo nome do Santo que gostam de ficar atentos a tudo.
Gostam do movimento das pessoas. Assistem parados ao vai e vem da pastelaria, do café, da tasca, do talho, do supermercado, da farmácia, dos correios, da padaria...
Ah a padaria... tão antiga como eles!
Devolve-lhes todos os dias o mesmo cheiro a pão quente de outrora... cheiro enriquecido ao fim de semana com açúcar e canela. Mantendo a tradição, aquele pão continua a ser feito da mesma forma que o era quando ainda eram todos jovens.
Aceitam a velhice com alguma nostalgia também. É humano que assim seja!
Aceitam a velhice entretendo o olhar, escutando as novidades, comentando as desgraças do Mundo, cumprimentando quem passa. Presenteados com dois dedos de conversa, também partilham histórias de antigamente.
Entre o passado e o presente, são sempre os primeiros a saber quem está doente, quem morre e quem nasce.

É ali que gostam de estar, ali onde há movimento
até que o tempo os deixe ficar...


(Fotografia: Jfifas)


Minha participação para a  FÁBRICA DE LETRAS  com o tema “VELHICE”




Com carinho
MZ

26 comentários:

  1. Adorei a ligação que fizeste da velhice com o santo António e as costas voltadas para ele. Seja em que vila for, ou cidade, todos os velhos acabam por passar o tempo nos bancos de jardim. Parece que se limitam a esperar sentados que a morte chegue ou será que observar o vaivém da vila os mantém vivos? Beijinhos

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  2. Muito bom. Acho que é dos que mais gostei de aqui ler... por enquanto :)

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  3. Brown Eyes,
    eu acho que neste caso é o que os faz sentir que estão inseridos na comunidade.E a comunidade também gosta de os ver ali e quando um se vai, fica sempre vazio.

    Beijinhos

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  4. johnny,
    também gosto mais do que escrevo quando me inspiro na realidade.

    Obg
    Bjo

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  5. Claro que "tiraste uma foto" muito nítida de um local que deves conhecer bem e que espelha perfeitamente o envelhecimento natural das gentes, o que é sempre muito belo, já que envelhecer não quer dizer obrigatoriamente sofrer.

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  6. Gostei do texto, é isso que sentimos quando observamos os largos de algumas aldeias mas, no fundo eles são felizes por o frequentar, na cidade não teriam esse prazer.
    Um beijo

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  7. Eu também adorei a imagem dos velhotes sentados a ver a "vida" da sua terra!
    Acho que a velhice nas aldeias é muito menos triste do que nas cidades, pelo menos é o que eu sinto...
    bjs

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  8. J.P.VAlente,
    é a realidade vivida de algumas pessoas no final das suas vidas...
    obg

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  9. pinguim,
    tem razão... conheço bem... e tenho a certeza que eles são felizes ali.

    um beijo

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  10. Lilá(s)
    foi o que eu disse ao Pinguim, neste lugar que eu conheço muito bem, é assim como eu descrevo e eles sentem-se bem... acarinhados, respeitados e principalmente o mais importante de tudo é que se sentem identificados com o que os rodeia.

    beijo

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  11. Papoila,
    deve ser menos triste, sim... não só pelo que eu descrevo no texto como também pelo facto de poderem ter a liberdade de estarem ali sossegados sem o sobressalto de serem assaltados a todo o momento. Quer queiramos quer não as cidades têm esses perigos... vamos acreditar que as aldeias ainda lhe dão a garantia de se sentirem seguros sentados num banco qualquer...

    beijinho

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  12. Gostei da tua abordagem sobre a velhice.
    O segredo do movimento é o infinito da velhice, é a questão que eu retrato no mar, sempre em movimento, muito velho mas sem parar porque parar é igualmente envelhecer, mas acima de tudo morrer!
    Jinhos***

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  13. Melga,
    tens razão... se te manténs activo que importa a idade, não é?

    Bjinho

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  14. Bonita história esta que nos deixas. Desperta em mim uma ambiguidade de sentimentos. Se por um lado a imagem que nos deixas é bonita, como se de uma fotografia de vida se tratasse, por outro traz-me à memória Solidão, como aquela música "O velho" da Mafalda Veiga. Dá que pensar, não achas? Bjs

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  15. Gostei muito... As ligações dos factos estão excelentes*

    =)

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  16. Sara,
    escutei a canção da Mafalda Veiga "O Velho" o poema fala-nos de solidão...
    Os "Velhos" de que falo, felizmente não sentem solidão, estão acompanhados e partilham alegrias e tristezas neste "Largo"

    Um beijinho e obrigada por me leres.

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  17. Por entre o Luar,
    fui ler a tua " Recordação" e gostei do realismo da tua história.

    Muito obrigada por me leres e deixares o teu comentário.

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  18. Lindo! adorei! Infelizmente é o k acontece com velhinhos! Aqui costumam ir para os largos das freguesias e ficam Horas e Horas afio a ver as pessoas a passar que lhes dão movimento a vida!

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  19. Azoresub-Bluewater,
    eu sei como é aí...
    e conheço bem as freguesias e os largos porque já vivi aí...

    fico contente por teres gostado.
    bjo

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  20. Meu Deus! Desculpem a emoção, mas estes são os 'meus' velhos. Os velhos que já eram velhos quando eu ainda era menina, sentados no banco da praça em frente à fonte, a controlar quem passa. Que viagem! Que nostalgia! Parabéns por me fazeres reviver tanta coisa, neste singelo e belo texto.

    Beijinho :)

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  21. Olá Helga,
    pois é... são os "nossos" velhos... mas os "meus" velhos são felizes assim...

    beijinho

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  22. Já tinha lido este texto por diversas vezes e achei que não lhe faltava mais nada,estava tudo dito. Mas quando vejo e sinto a solidão que por aí vai apetece-me dizer quem me dera ter uma velhice assim ,calma , minimamente segura e penso que apesar de tudo feliz(pena que o estado e muitas vezes as familias não dêm um pouco mais apoio as pessoas de idade). Estão com os seus amigos, num espaço que é seu e que conhecem, apesar da velhice e dos dias que passam rápidamente não estão sós.
    Mais um texto lindíssimo MZ, como diz o Pinguim, uma belíssima fotografia, feita de palavras.

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  23. Diário de Lisboa,
    é sempre bom saber que conseguimos transmitir para os outros um "retrato" do que os nossos olhos veêm e sentem... os meus olhos são a minha objectiva e as minhas palavras o momento captado... com afectos e emoções.

    Continuo a adorar ver Lisboa através da sua câmara fotográfica e da sua sensibilidade também.

    muito obrigada por me ler...

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  24. MZ, esse é o retrato que tenho da aldeia dos meus pais. Não há nada mais luso do que idosos em bancos de adro da igreja, a ver a vida dos outros passar...

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  25. Catstone,
    é assim em cada aldeia do nosso Portugal...
    é como se de um porlongamento das suas casas se tratasse e aqueles que aiinda vivem sós, sentem-se mais acompanhados nestes espaços onde quase tudo acontece. A aldeia conhece-os e eles conhecem a aldeia, sentem-se em casa.

    Obg pelo comentário

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Saber que alguém me lê, é bom.
Retribuirei a vossa visita com muito gosto.Obrigada