sexta-feira, 29 de março de 2013

Cheiros de Páscoa numa Receita.


 
Regressaram os cheiros do alecrim no raminho benzido do domingo das palmas e da oliveira que este ano, trazem no atado de fita roxa um cacho de brotos, flor de azeitona que já não chega a ser.

É a semana dos cheiros da rapa maceira. Na gamela de madeira, a canela moura e o trigo já macio feito farinha; leve fina e branca. O amarelo das gemas e o açúcar refinado a envolvem-se numa chuva de limão em raspa. Intensifica assim o aroma que nos faz crescer água na boca e outros desejos. Os afrodisíacos. Estes, quando nos escorregam as mãos eroticamente besuntadas pela dourada e pura manteiga.
Com um rubor nas faces e uma dança de braços bem acertada, sova-se a massa com paixão e intensidade tal, até quase desfalecermos. Acarinha-se e aconchega-se em lugar quente esperando que cresça. Aqui já não há frenesim nem poesia, é química e o mistério da fermentação. Depois, é o cheiro a lume da madeira de pinho fogoso e abrasado no forno abobadado como só os sábios conseguem fazer. Os ovos e as tiras de massa a cruzarem-se nos folares, a alegria das lembranças de Páscoa, tudo misturado com o receio de os queimar de tanta saudade.


Mz


 
imagem:  A Pérolado Chaimite, Duque Ávila 38
fotografia do blogue Diário de Lisboa

quinta-feira, 21 de março de 2013

Medo.


Cada dia mais no limite, cada dia mais no fio da navalha. Estes não são os tradicionais crepes chineses da rua em cama de cartão. Eu vi-os no aeroporto mais ou menos asseados, arrastando malas baratas de lona cheia de borboto e de fechos estragados. Pedem um cigarro ou até mesmo as beatas e confundem-se com a multidão viajante. Eu vi-os na Gare do Oriente, arrastando bagagem que se resume a um monte de nada. Eu vi-os esta noite a juntarem-se em pequenos grupos tentando decidir talvez o lugar que irá servir de cama, ou quem ficará de vigia na noite que se aproxima. Eu vi-os e tive medo da verdade. Tive medo da miséria, da pobreza, do caos socioeconómico. Acelerarei o passo aconchegando o cachecol ao pescoço escondendo uma pequena joia, e consciente do meu egoísmo, continuei ainda com mais medo dos nossos novos pobres fugindo deles como quem foge da pior escumalha. Fugi de pessoas a quem lhes foi retirada a dignidade de um trabalho, uma casa, uma família. Apressei-me até ficar a salvo deste cenário dantesco e tive vergonha do meu medo.
 
Mz
 
 
Imagem: Tela de Amedeo Modigliani
Portrait of Maude Abrantes pesquisa google 
 

sexta-feira, 8 de março de 2013

Saudade.


Tenho dias em que culpo um cheiro, um paladar, uma fotografia. Tenho dias em que enalteço uma gargalhada que surge na lembrança de bons momentos. É a ânsia de estar lá. É o desejo de trazer ao presente o bom da vida que o tempo já se apropriou. Há medida que o tempo avança, ou a distância separa, vai-se amontoando nostalgia, um vazio inexplicável desse sentimento chamado saudade. E tenho dias em que culpo a chuva.

Saudade, saudade, memória no pretérito dos afectos, onde até o que doeu se arrasta sentimental e melancolicamente dócil.  

Mz



Original escrito para
Desafio: Fábrica de Letras
Tema: SAUDADE



 
 
imagem: Tela de Amedeo Modigliani
Pintor e escultor italiano pesquisa google

domingo, 3 de março de 2013

Manifestação


Ontem nasceram marés nas ruas.
Maré cheia, maré alta, branca, colorida.
Mar de gente descontente, sentida.
Fartos, cansados. Oh quantas amarguras!
No rufar crescente da marcha, os cravos, a bandeira e a canção aqui
Rumo ao rio, foi a barca tranquila - Manifestação

Nas ondas, a voz;
Basta
Oiçam
Demissão!
 
 
Mz
 
 
 
 
Manifestação de 2 de Março 2013 
 
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 Imagem: Fotografia Lx Factory, open day