Sempre me soou a voz de merceeira malvada. Carrancuda, modos grosseiros e sem sorrisos, D. Ma. fez parte dos meus medos de infância.
Como eu temia aquela mulher que arfando com todo o peso do seu corpo, se debruçava sobre o balcão lambendo os dedos para desfolhar os débitos. Enterrados na gordura esférica do seu rosto, assustavam-me os seus olhos negros espelhando cifrões de carvão, enquanto somava ágil as parcelas. Não errava um centavo. Como eu a detestava! Obrigava-me a ficar ali, à espera de vez. Eu, uma criança que obedecia a um recado de sua mãe. No meu silêncio, repetia e memorizava as duas ou três coisas da pequenina lista de mercearia enquanto apertava com força os escudos guardados numa das mãos. Nos dias quentes, evitava olhar para o prato de azeite pejado de moscas, esquecido a um canto. Revoltava-se o meu pequenino estômago e, o medo crescia a par daquele nojo, mas nunca desisti. Era o medo e ao mesmo tempo o desafio de o tentar superar. Os meus olhos rasavam o balcão alto de mármore encardido que suportava metade do peso pendido da sua dona e uma balança de esmalte branca. De um lado, o prato de aço, do outro, a base para os pesos. Tudo era pesado ao grama. Tudo era avulso e tudo se pagava.
O tempo foi passando, eu cresci e o medo desapareceu. D. Magna moderou os modos para poder competir com o minimercado ao lado da sua mercearia porque a inveja a corroía. Um dia, e ainda no século XX, os sorrisos apareceram naquela boca já velha. Quando esse dia chegou, nunca mais parou de sorrir e tudo ficou diferente. As portas fecharam-se e só se abriam para passeios de mão dada com uma espécie de ama. Arreganhava-se ao mundo sem saber porquê.
Do medo que eu senti em criança, apenas estas vagas recordações e a surpresa de um final inesperado. Jamais pensara que D. Ma. viria a conjugar um sorriso de louca e um porte sereno.
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