sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Dona Ma.


Sempre me soou a voz de merceeira malvada. Carrancuda, modos grosseiros e sem sorrisos, D. Ma. fez parte dos meus medos de infância.

Como eu temia aquela mulher que arfando com todo o peso do seu corpo, se debruçava sobre o balcão lambendo os dedos para desfolhar os débitos. Enterrados na gordura esférica do seu rosto, assustavam-me os seus olhos negros espelhando cifrões de carvão, enquanto somava ágil as parcelas. Não errava um centavo. Como eu a detestava! Obrigava-me a ficar ali, à espera de vez. Eu, uma criança que obedecia a um recado de sua mãe. No meu silêncio, repetia  e memorizava as duas ou três coisas da pequenina lista de mercearia enquanto apertava com força os escudos guardados numa das mãos. Nos dias quentes, evitava olhar para o prato de azeite pejado de moscas, esquecido a um canto. Revoltava-se o meu pequenino estômago e, o medo crescia a par daquele nojo, mas nunca desisti. Era o medo e ao mesmo tempo o desafio de o tentar superar. Os meus olhos rasavam o balcão alto de mármore encardido que suportava metade do peso pendido da sua dona e uma balança de esmalte branca. De um lado, o prato de aço, do outro, a base para os pesos. Tudo era pesado ao grama. Tudo era avulso e tudo se pagava.

O tempo foi passando, eu cresci e o medo desapareceu. D. Magna moderou os modos para poder competir com o minimercado ao lado da sua mercearia porque a inveja a corroía. Um dia, e ainda no século XX, os sorrisos apareceram naquela boca já velha. Quando esse dia chegou, nunca mais parou de sorrir e tudo ficou diferente. As portas fecharam-se e só se abriam para passeios de mão dada com uma espécie de ama. Arreganhava-se ao mundo sem saber porquê.
Do medo que eu senti em criança, apenas estas vagas recordações e a surpresa de um final inesperado. Jamais pensara que D. Ma. viria a conjugar um sorriso de louca e um porte sereno.






Imagem: Google


Com carinho
Mz

17 comentários:

  1. Eu tinha a Menina Celeste (ou Celestre, conforme a idade do anunciante) e a Dona Ana... nomes muito melhores que D. Magna!

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  2. Profundas reflexões e recordações MZ. Lembrei de uma mercearia que ia, mas diferente desta e o meu medo era outro o de encontrar meu pai a beber mais que devia.

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  3. Extrema sensibilidade nesta "pintura" de um retrato muito bem descrito.
    Quase se podia chamar "metamorfoses"...

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  4. Curioso, na minha infância também existiu uma espécie de dona Magda...a minha nunca vi sorrir e durante muitos anos me assustaram as mulheres gordas que não sabiam sorrir.
    Bjs

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  5. Émezêamiga

    Quem escreve Jamais pensara que D. Magna viria a conjugar um sorriso de louca e um porte sereno. tem de ser, forçosamente, bué da fixe (o que eu aprendo com os meus netos...)

    Bela crónica, bem escrita e salpicada de saudade do medo de criança. E, assim, é bom ter saudade; nunca ser-se saudosista.

    Jornalista e escritor (segundo dizem...) adoro escrever, mas, claro - como vinho tinto - de ler. Completam-se um ao outro.

    E volto para a minha gaiola, ciao

    Qjs = queijinhos = beijinhos

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  6. Não há Magma que não se modifique...como todos nós!

    Bjinhos*

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  7. Johnny;
    a maioria das crianças de hoje já não terão nomes destes para recordar. Serão mais Cátias Vanessas com sorrisos impostos pela gerência das grandes superfícies.

    bj

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  8. CArolina T.
    gosto de registar factos e personagens que passam por mim e como elas interferiram ou interferem na minha vida enquanto criança, adolescente e agora já numa fase mais madura.

    Todos nós temos os nossos medos e, os piores são aqueles que não dependem apenas e exclusivamente da nossa própria vontade.

    Beijinhos deste MAR!

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  9. Pinguim;
    sim, bem que podia ser "metarmofoses" :)
    O tempo obriga-nos a mudar os comportamentos. Seja pelo crescimento natural do corpo e da mente ou mesmo pela evolução da economia ou então as doenças que nos apanham despervenidos A Mudança é uma constante.

    beijinhos

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  10. Lilá(s)
    é engraçado que todas as pessoas mais gordinhas que conheço pessoalmente neste momento são muito, muito simpáticas, com um sentido de humor fantástico e bastante divertidas.

    Bjs


    Papoila;
    apenas pelo facto de ser uma história da aldeia, eu sabia que ias gostar um bocadinho.
    :)

    beijinhos

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  11. H. Antunes Ferreira;
    de facto não é saudosismo, mas um gosto em recordar pessoas que fizeram parte da minha infância e como elas interferiram no meu crescimento numa pequena aldeia. Acaba por se tornar uma parte da minha vida que fica registada pelas palavras, uma vez que a memória me pode falhar um dia.

    Vou visitá-lo em breve obrigada pelos queijinhos :)



    Mariavaicomasoutras;
    adorei o teu sentido de humor :)
    Beijinhos



    Joana;
    obrigada e bem-vinda!
    Irei visitar-te em breve.

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  12. bonita historia!! tens imenso jeitinho para escrever amiga!! muitos beijinhos!!

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  13. Gatinhafofa;
    obrigada e muitos beijinhos também para ti!
    :)

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  14. Eu tive uma relação do género com o barbeiro, o Sr. Valdemar, que ainda hoje corta o cabelo (mas não a mim, que o tipo já treme por todos os lados).

    Beijoca!

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  15. Rafeiro Perfumado;
    já estou a imaginar o Sr. Valdemar a tremelicar e de navalha na mão... é melhor não arriscares mesmo!!!

    Bjs

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Saber que alguém me lê, é bom.
Retribuirei a vossa visita com muito gosto.Obrigada