Cada dia mais no limite, cada dia mais no fio da navalha. Estes
não são os tradicionais crepes chineses da rua em cama de cartão. Eu vi-os no
aeroporto mais ou menos asseados, arrastando malas baratas de lona cheia de
borboto e de fechos estragados. Pedem um cigarro ou até mesmo as beatas e confundem-se
com a multidão viajante. Eu vi-os na Gare do Oriente, arrastando bagagem que se
resume a um monte de nada. Eu vi-os esta noite a juntarem-se em pequenos grupos
tentando decidir talvez o lugar que irá servir de cama, ou quem ficará de vigia
na noite que se aproxima. Eu vi-os e tive medo da verdade. Tive medo da
miséria, da pobreza, do caos socioeconómico. Acelerarei o passo aconchegando o
cachecol ao pescoço escondendo uma pequena joia, e consciente do meu egoísmo, continuei
ainda com mais medo dos nossos novos pobres fugindo deles como quem foge da pior
escumalha. Fugi de pessoas a quem lhes foi retirada a dignidade de um trabalho,
uma casa, uma família. Apressei-me até ficar a salvo deste cenário dantesco e
tive vergonha do meu medo.
Mz
Imagem: Tela de Amedeo Modigliani
Portrait of Maude Abrantes pesquisa google